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Joãozinho Ribeiro

O Papel da Cultura na resistência democrática


Joãozinho Ribeiro

Compositor, poeta e gestor cultural.

Acumula uma série de premiações e citações em quase todas as publicações e registros da música maranhense, já produziu e desenvolveu memoráveis projetos dentro e fora de São Luís.



Upaon Açu - Como um cimento especial, capaz de colar os cacos já tão fragmentados da humanidade, ou talvez como a ferramenta fundamental para escancarar as portas do futuro e de todas as suas possibilidades, o que tentamos entender por cultura e como o seu papel na resistência democrática, nesses tempos sombrios, em que se encontra mergulhado o nosso país, passa não só pela contraposição de ações e gestos determinantes neste enfrentamento, como pela defesa de um campo de ideias capaz de dar conteúdo a um discurso que motive e mobilize amplas camadas da sociedade dispostas a lutar pelos seus direitos, com destaque para o leque daqueles que giram em torno da dignidade da pessoa humana - dentre estes, os Direitos Culturais.


A Cultura não é algo abstrato, neutro, perdido no tempo e no espaço; é coisa dos homens e mulheres, é histórico, é geográfico, construído, inerente ao ser humano. É como se fosse um parto realizado no quarto da casa do coração! Não é e nunca será coisa somente de artista, não se resume a uma obra intelectual, a uma canção, um quadro, uma peça de teatro, uma dança, um filme, uma performance etc. É mais que tudo isso somado. É a invenção do futuro, construída a partir do presente, com todas as consequências herdadas do passado.


Resistir, neste momento que sombras tenebrosas pairam sobre o cenário cultural brasileiro, é transformar os lugares das nossas encenações artísticas e culturais naquilo que o professor Milton Santos designava como o espaço do acontecer solidário; o que talvez possamos traduzir, em tempos de hoje, em conspiração artística, em cumplicidade cultural. Num recorte preciso e necessário, é transformar cada manifestação e apresentação cultural numa ocupação com arte, com dignidade, com todos os encantamentos e encantarias!


Mas isso não será possível se não estivermos juntos assistindo e debatendo “Bacurau”, enchendo as salas de cinema e propagando nas redes e outros espaços possíveis e impossíveis sua carga simbólica; se não lotarmos os teatros, as escolas, as feiras, os circos, as praças, prestigiando os shows e as peças dos nossos camaradas da vida & da arte; se não comparecermos, sempre em bom número, às intervenções e ocupações das ruas e avenidas, e nos tornarmos sujeitos e protagonistas da nossa própria história.


Se não difundirmos em alto e bom som o significado político e histórico de um Prêmio Camões para o Chico Buarque de Holanda, neste contexto atual. A resistência democrática passa pela democracia cultural, que passa pela democracia política, econômica e social, em todos os sentidos e níveis da existência; pelo acesso ao conhecimento e pelos meios que escancaram as portas para esses conhecimentos; pela liberdade de expressão, pelo prazer de tocar um instrumento, pelo ofício de viver e outros vícios; pelo prazer de compartilhar livremente uma nova criação do espírito; ou, como costuma propagar o companheiro Sérgio Mamberti: por educar a cultura e culturalizar a educação.

Tudo isso é divino, tudo isso é maravilhoso! Cultura é uma coisa ao mesmo tempo maravilhosa e perigosa para os regimes autoritários e ditatoriais, que não suportam a existência do outro que pensa diferente, que odeiam a diversidade e debocham da liberdade. Por isso o apelo à censura, que pode acontecer explicitamente, ou por meio do dirigismo cultural, ou do simples corte das fontes de financiamento público das produções culturais que incomodam. Os ditadores e os governos ilegítimos sabem muito bem disso.


Os exemplos são muitos e variados. Vide o destino dos artistas e dos intelectuais contestadores na Alemanha de Adolph Hitler, na União Soviética de Joseph Stálin; no Chile de Augusto Pinochet; no Brasil, durante a ditadura civil-militar instaurada em 1964; e, mais recentemente, com o vampiro Temer, e agora com o projeto mal acabado de Trump dos Trópicos, Jair Bolsonaro.


Quando falamos em censura, falamos dos atos praticados pelo Estado e por seus agentes. O direito de pensar e de expressar-se livremente está assegurado na Constituição da República Federativa do Brasil, como direito fundamental, como cláusula pétrea, no artigo 5º, incisos IV e IX. O Brasil é signatário de diversos tratados que garantem a liberdade de expressão como direito fundamental. Sem liberdade, não há arte, o que pode existir é apenas propaganda, ou dominação e clientelismo político puro e simples. Isso vale, no plano institucional, tanto para os governos de direita como de esquerda também.


Ao invés de uma arma, queremos uma canção; no lugar de um tiro, queremos um poema; ao invés de uma convocação para a violência, uma singela demonstração de afeto...um abraçasso, um beijaço...sempre uma nova mensagem de esperança e liberdade, na certeza de que a construção de um outro mundo fraterno e solidário ainda é possível e urgente, com todo o afeto das canções!

 

Enquanto em mim restar / Na boca alguma fala / E um lúcido lampejo / Ferindo o pensamento / Por mais que se apodere / De mim o desencanto / Ainda assim resisto / E pra resistir eu canto.

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